Textos

Mamã Morte
Djaimilia Pereira de Almeida

 

Mamã morte, estou aqui, cantou Cruzado em Kimbundu, passando a porta de casa. Não se dirigia a Deus, ao seu pai nem à sua mãe, mortos há muito. Chegara o seu momento, por absurdo que fosse, olhando em volta: o casebre ao fundo de uma alameda sem árvores, o sobretudo ruço, esfomeado, taciturno. Mas mesmo ali, onde nem eucaliptos medravam, a morte cantou e, sabendo-se cantado, ele assentiu.
O filho desconhecia o canto de morte, que antecedia os últimos dias. Não sabia que ela queria o pai sozinho, que reclamaria a solidão de Cruzado sem contemplar amor ou amizade, que na sua barca não cabiam mulher nem filhos. A morte queria os homens como a vida os tinha encontrado, despidos e leves, anteriores aos bolsos. Mamã Morte, entoava Cruzado enquanto abria e fechava gavetas à procura de fósforos.
Ou o pai cantava no banho e o filho escutava-o do outro lado da porta, trancada por dentro.
A canção cantou nele, e logo Cruzado se fez fechado, a sua cara mudou aos poucos, o cabelo perdeu a cor, os olhos, as feições se apagaram.
Despedia-se dos sonhos, temia tombar no meio da rua.
Mamã morte, estou aqui, cantava, andando entre os vivos, vendo a cidade pela última vez. Nem dor nem alarme. Nem tristeza nem alegria. Não antecipava como seriam as suas exéquias, não se sentia resolvido, justificado, amargurado. Também não tinha medo, nem sentia que precisasse de coragem. A morte cantara nele.

*

Chovia. Estávamos presos no trânsito, à saída de Lisboa. “Deve ter havido um acidente”, comentámos. Seriam sete da tarde. Na faixa da esquerda, um autocarro parara no meio da via. “Será uma avaria?” O primeiro homem cruzou a estrada pela direita, atirando-se para o meio dos carros em passo de corrida. Vinha das obras: boné na cabeça, calças molhadas, botas sujas de tinta, saco a tiracolo. Não demorámos mais do que alguns segundos a entender que o autocarro parara no meio da estrada para o apanhar, embora não houvesse ali perto nenhuma paragem. Não era trânsito. Apenas o caos causado nas coisas por um coágulo.
O homem bateu à porta do autocarro, sorriu, a porta abriu, o jovem motorista acenou-lhe, e ele desapareceu dentro do veículo. O trânsito fluiu.

*

À minha janela, nestes dias de Outono, um grupo de jardineiros trata de um jardim. O segundo homem, rapaz de pele negra quase azul, distingue-se do resto do grupo, seis ou sete homens e mulheres jovens, com poucos dentes e rosto sofrido. Ouço-o cantar toda a tarde, enquanto corta relva, desenhando diagonais num relvado aqui perto. Canta um espiritual contínuo numa língua desconhecida, de pulmões abertos, uma canção de trabalho. O ruído do cortador de relva serve-lhe de ritmo. Não sei de onde veio e nunca me dá os bons-dias, quando nos cruzamos na rua. O seu canto é ancestral, vem do estômago. Pergunto-me onde o aprendeu, quem lho terá ensinado, decerto muito longe daqui, noutro continente. Hoje não é um escravo e talvez nunca tenha sido. Ganha o seu salário, almoça à sombra de um choupo, enrola tabaco antes de pegar ao serviço. Canta como cantam as ceifeiras, os vindimeiros, os pescadores, os apanhadores de algodão, de café, de amêijoa.
Manuel Gusmão escreveu um verso que me lembra estes dois homens:

“Contra todas as evidências em contrário, a alegria.”

Ninguém ensina — nem se imagina como é árduo deixarmo-nos ir pela mão da alegria. Eu costumava pensar nela como um fantasma que se aborrece de assombrar algumas almas e as abandona. Agora penso que anda no nosso encalço, enquanto a procuramos com uma lupa, atentos a carreiros de formigas. Penso nela, hoje, como uma sombra brincalhona, que gosta de nos ver atrapalhados.

*

Uma madrugada, Cruzado saiu. Não levou carteira nem documentos, apenas trocos para o autocarro. Não precisou de esforço. Encostou-se às costas de um homem metido consigo. Quando o autocarro partiu, através dos vidros embaciados, já a cidade o engolira entre os vultos. Mamã morte, estou aqui, cantou dentro da sua cabeça.
A cidade assomava do nevoeiro: as fachadas engavetadas entre pré-fabricados que eram agora restaurantes franceses, farmácias que tinham sido tascas, supermercados que um dia foram sapateiros, tudo exibindo um pouco do seu passado, ainda que vestido com novas cores. E nunca mais ninguém o viu.

A Cassette de Santa Luzia

Há algum tempo atrás na ilha conhecida como Santa Luzia a menina, a quem as cagarras e as tartarugas chamavam Luanda, encontrou uma cassete. Na verdade ela nunca tinha visto uma cassete. Não fazia ideia do que aquilo realmente era. Percorreu incontáveis quilómetros até chegar a casa do mais antigo habitante da ilha, o querido Matemo, de forma a saber o que tinha em mãos. Lá chegada, assobiou.
– Mas queres o quê Filha de São Tomé e Filha de Uno? Luanda não respondeu. Estava rosa choque. Como o secular Matemo sabia que era ela apenas pelo assobio? Sabia que tinha ido ao sítio certo. Ele sabia mesmo o quase tudo.
Sentou-se, abriu o saco que trazia a tiracolo e ansiosamente disse: Paizinho Humano da nossa fauna e da nossa flora, podes dizer o que é isto que encontrei esta manhã? Encontrei junto as pedras e não faço ideia do que isto seja. Nunca vi nada igual e fascina me. Impressiona me a forma, as cores, desejo que tenha algum poder. Matemo sorriu e disse encontraste. Encontraste a magia que pode amansar ou rebelar o coração dos humanos fora e dentro desta ilha. Luanda se alegrou. Então existem mais. Então talvez não será ela a única menina, pensou.
Voltou para casa, a cantarolar o que tinha escutado no aparelho de Matemo. Precisava de um aparelho igual para ouvir dia após dia o que a mágica cassete transmitia. Entrou pela porta dos fundos pois não queria que os pais percebessem que tinha chegado no rebentar da madrugada a casa. A Mãe Uno percebeu mas disse nada. Deixou-a deitar se e aconchegar se nos lençóis feitos pela Avó Itaparica. E foram várias as noites ignoradas pela Mãe Uno. Ela sabia que não podia impedir a menina filha de encontrar o que ela queria. Apenas orava para que as deusas dos mares a protegessem e que tudo de bom lhe acontecesse no sempre daquele agora. A Mãe Uno sabia que Luanda almejava conhecer mais ilhas. Não havia um dia em que não suspirasse essa mudança. Estava visto naquilo que Luanda não via.
Depois das aulas, Luanda sentava-se a beira mar na esperança que o mar lhe oferecesse mais cassetes. Dia após noite apenas chegava plástico e mais plástico, daquele plástico que asfixiava os seus amiguinhos, a função dela passou a ser protege los dessa invasão. Vinham em todas as formas e tamanhos. Ela sentia-se cansada, irritada. Porque é que aquelas coisas vinham de longe magoar o que ela conhecia? Adormeceu. Sonhou.
No sonho de Luanda, surgia uma outra menina igual a ela, quase que podia ser sua gémea, pele escura, cabelo crespo, dedos enormes, olhar permanentemente inquisitivo. Olharam-se. Não falaram. Deixaram de se olhar. Falaram. A voz dela era igual a voz que ecoava da cassete. Então, ela falou:
– O nome é Benguela. O meu. Já tive tudo e hoje tenho quase tudo. Tenho os meus junto de mim, não tenho tecto. Vejo que tens mar como tecto e areia como chão. Segura bem o teu tecto, agarra-te bem ao teu chão. Olha ao meu redor e não há mais quarto dos meus pais, não mais. Não mais quartos dos primos nem da tia. Volto a olhar e há coisas partidas, tantas coisas partidas que parecem becos sem saídas. Maior medo que sinto hoje chama-se demolição.
Onde anda a minha cama? Gostaria de voltar a minha cama, a minha boneca, a minha fofa boneca com os seus enormes olhos azuis e sem saia, apenas de top e cuecas, como gostaria da nossa normalidade chata. Olho e vejo um pouco de tudo. Vejo o saco verde e branco que a minha mãe Eguba usava para ir ao ginásio. Vejo no escuro da minha mente a bobine onde o meu pai Príncipe via e revia imensas vezes o casamento deles. Era um romântico. Vejo a escova de fatos que a tia Marajó não abandonava por nada. Tinha de ir impecável para a igreja. Olho também para a quantidade de cartões que ela guardava na carteira. Pode uma pessoa guardar assim bwe cartões? O que me rio agora eu ao olhar para os desenhos rupestres que o meu primo Ibo fazia nas aulas de inglês.E Ele gostava mesmo de estudar. Penso nele e só vejo ditados, exercícios de matemática, até um incentivo para fazer o curso de engenharia. Como me enternece novamente recordar que a minha prima Boavista andava para frente e para trás com a disquete onde guardava as fotos para o seu book. Ela queria bwe ser modelo.Os sonhos demolidos.Vivo saudades, saudades do meu bairro, saudades da minha gente, saudades do meu pequeno imenso mundo. Luanda não acordes, Luanda tu não venhas.
Luanda acordou. Luanda pensou, reuniu os mais velhos, sim continuava a ser uma indiscutível verdade: – todos eram seus mais velhos, e falou lhes da importância de terem uma ilha limpa, sem plástico, o que se fazer para impedir que os destrua. Pelas cagarras, pelas tartarugas,por eles, por mim.
Há não tanto tempo atrás assim Luanda se eternizou menina irmã das ilhas, graças ao trabalho conjunto de todos habitantes da sua ilha para eliminar o tal plástico homicida e igualmente graças ao som da cassete. A magia da cassete que afinal era o flow e as rimas construídas por Benguela. Sonho?Sempre realidade.

CONTOS DE LISBOA
Feliz Aniversário – Yara Monteiro

Mira Loures, sábado, 1 de setembro de 1990

Amiga Márcia!

Feliz aniversário!
Como estás?
Adoraria estar contigo. Irmos a uma farra, dançar até de manhã.
No Rio de Janeiro, tens onde kizombar ou ficas-te pelo «pé de samba»? Não faças como eu: trabalho, casa; casa, trabalho.
Saudades da nossa juventude.
A tua última carta encheu-me de alegria e orgulho. Se bem que terminares a licenciatura com distinção não é para mim uma surpresa. Sempre foste inteligente e dedicada. Mereceste e bem a bolsa de estudo. Quando terminares os estudos, pensas regressar a Lisboa?
Quem sabe um dia, eu recomece a faculdade. Por agora, os meus estudos deixaram de ser prioridade. Não sou prioridade.
A cada mês, guardo uma ninharia de tostões para um amanhã difícil que se avizinha. Falar-te-ei dele, do amanhã, daqui a nada; primeiro, contar-te-ei o belíssimo dia de praia que, hoje, tivemos em família.
Fomos à praia porque a criança não pode crescer burra. Tem oito anos e ainda não tinha visto o seu mar lusitano.
Depois do nascimento do Zequinha, sumiu-se-me a coragem e esfarelou-se-me a força para, no meu dia de folga, encarar mais transportes públicos, mais filas, mais sacos com comida, mais ladeira, mais do mesmo que tenho durante toda a semana.
O Zequinha não se acanhou com a água gelada, jogou-se a ela sem hesitação. O Caló juntou-se a ele, não por vontade própria, mas porque não podia, em frente ao filho, acobardar-se. Todo ele tremia.
Tapada com a linda canga de praia que me enviaste, deixe-me estar no areal, a vê-los brincar. As cores tropicais dão-me alento. Obrigada, querida amiga.
Nisso tens sorte: apesar de estares longe de todos, o frio não te regela os ossos e trava o pensamento.
Pergunto-me se alguma vez me irei habituar ao frio do mar, do inverno e das pessoas. O vento. Tanto vento. Até mesmo na praia. Desespera-me.
Se nos visses hoje, dirias que o Caló e eu continuamos apaixonados. Entre nós, houve até um gentil tocar de lábios, um beijo quente que, em mim, aflorou um ténue desejo.
Saímos da rotina, estávamos despreocupados. Podíamos fingir estarmos de férias, numa praia paradisíaca, distante da vida severa que nos verga as costas, do cansaço diário que nos trouxe a distância e levou a paixão.
Há quase dois anos que não nos procuramos. A cama tem servido, apenas, para descansar o corpo. Pouco nos vemos e pouco nos falamos. Vamo-nos mantendo pelo Zequinha, o que é uma boa razão, uma razão nobre, diria.
Metade da semana, o Caló não vem dormir a casa. Diz que fica na obra para não ter de acordar tão cedo. É menos cansativo. Finjo desconhecer quem são os vizinhos que com ele trabalham na obra mas todas as noites regressam ao bairro. Vêm a casa marcar o ponto e dormir com as mulheres. Fecho os olhos e tapo o nariz para não sentir o perfume de mulher nas suas t-shirts interiores. O Caló devia lavar a roupa onde suja a minha honra.
Enfim. Tolero.
Por enquanto, cá em casa, ainda não faltou com dinheiro. Assim que recebe vai de imediato pagar a conta da mercearia. Minha amiga, homem não é de se fiar, e o «amanhã difícil que se avizinha» pode bem chegar como uma forte rajada de vento. Por isso o pouco dinheiro que sobra não pode ir para propinas de estudante.
Tu como andas de namoros? Ainda com o taxista ou já o despachaste?
Espero que gostes do vestido que te envio, fui eu que o fiz. «Designed by Aurora», quem sabe um dia! Por ora, é mais um sonho que fica na gaveta. Junto aos outros. Todos carcomidos pelas traças deste meu quotidiano.
«Como nuvens pelo céu/Passam os sonhos por mim», escreveu o poeta.
A minha vida irá melhorar. Tenho a certeza. Foi só um desabafo.
Não sei se já sabes, mas a Viviane regressou a Luanda. Aguentou aqui um ano. Diz-me que, para acordar às quatro da manhã, passar frio, limpar a porcaria dos outros e ser mal paga, prefere voltar para a poeira. Parece que tem uma ideia genial para um negócio.
Dá notícias.

Um forte abraço desta tua amiga que muito te estima,
Aurora Oliveira

P. S.: Esperava escrever-te esta carta com maior antecedência. Desculpa-me. Sei que sim, que estou por ti desculpada. Não tive vagar para o fazer antes.

Mira Loures, domingo, 22 de Agosto de 1993

Querida mana,

Daqui a quinze dias, celebrarás o teu aniversário.
Junto a esta carta, segue um outro envelope. Abre-o, apenas, depois de apagares as tuas cinquenta e cinco velas.
Decantei a saudade para que não chore a escrever-te estas palavras. O teu colo de irmã mais velha faz-me muita falta. Quando os nossos pais se foram, tomaste o seu lugar. Eras tão nova. Tanto do que abdicaste por mim e pelo Léu. Que nunca te tragamos tristezas.
Como tens passado? A perna está melhor?
Esta carta, os medicamentos e os cremes que pediste seguem com a Paula hospedeira, amiga da minha vizinha do lado, a dona Bia. A Paula é porreira. Disponibilizou-se logo para, sempre que necessário, passar a levantar a medicação. Em conversa, descobrimos que é prima do alfaiate Pereira, o que trabalhava na Casa York. O mundo é mesmo pequeno.
Sei-te apoquentada com a minha separação. Não há porque estares assim. O Caló e eu andávamo-nos a arrastar. Karlene, minha irmã, chegou a um ponto que já não dava mais.
Tolerava as desculpas para dormir fora de casa. Verdade seja dita, que a mim tanto me dava. Os problemas reais começaram quando os «supostos» atrasos de pagamento do salário semanal passaram a ser recorrentes. Escrevi «supostos» porque vim a descobrir que era dinheiro que gastava na farra e a comprar material para remodelar a casa da são-tomense que amantizou.
Isso não lhe podia admitir: tirar do conforto do nosso filho. Vivíamos aqui “ó tio, ó tio”, porque não havia dinheiro para remendar o telhado e a canalização.
Já era piada no bairro. Ao passar, calavam-se, para depois, atrás de mim, recomeçarem a cochichar.
Quem me abriu os olhos foi a dona Bia. É gente séria, devota a Deus. Alertou-me.
Fui, literalmente, apanhar o Caló com a mão na massa (de cimento) na casa da outra.
Já não o deixei regressar. Foi o melhor que fiz: pô-lo na rua.
Se ele, agora, se queixa aos seus parentes na banda, minha irmã responde só: «Tivesse juízo.»
Dando crédito a quem a ele tem direito: até agora, o Caló continua a ser um bom pai. Aos domingos, leva o Zequinha a passear e ajuda nas despesas. Ainda no outro dia, comprou um par de ténis pretos para o filho. Não é como tantos outros pais que desaparecem.
O miúdo sente a sua falta. É normal. Será assim até que se habitue à ausência do pai. Habituamo-nos a tudo.
Agora dorme comigo e, à noite, não larga o macaco rosa que o pai lhe ofereceu. Eu tento compensar no que posso: dando mais amor e passando todo o tempo livre que consigo com ele. O teu sobrinho é um ótimo menino. Na escola, continua a tirar boas notas e prefere os livros às ruas do bairro.
A semana passada, o Caló disse-me estar a considerar ir trabalhar para a Holanda. Muitos trabalhadores das obras têm para lá emigrado. Parece que a vida, por lá, corre melhor do que aqui. Ganham bem mais, têm contrato de trabalho e conseguem ter os papéis em dia.
Para dizer a verdade, senti que me pedia opinião ou mesmo autorização, pois deixou-se estar em silêncio, com o olhar preso ao chão. Pedi-lhe que não se esquecesse do filho. Não me competia opinar mais sobre a sua vida. Em seguida, pôs-se a falar sem parar.
Querida irmã, comigo e com o Zequinha, não tens com o que te preocupar. É como sempre disseste: «Em casa de mulher pobre não se passa fome, nem se vive na merda.» Bons hábitos, os que nos transmitistes. Dou sempre um jeito.
A dona Bia tem sido de grande ajuda. Sempre que preciso trabalhar horas extras, fica com o Zequinha.
Os vizinhos do bairro são a família que tenho aqui. Desde que estou sozinha, muito me têm apoiado. A minha patroa, também. Não há sexta-feira que não me avie com «mimos para o seu menino» e rezas aos céus. Coloca tanta coisa dentro da minha carteira que, já por duas vezes, as alças rebentaram. É uma carteira grande, dá-me muito jeito. Já não aguentava andar com sacos e saquinhos. Por pouco não a estraguei completamente. Cometi o erro de a limpar com lixívia, e o couro, que era branco, amarelou.
Devagar, devagarinho, planeio começar a melhorar a nossa casa. Fui aumentada. A custo, que a filha da dona Isabel é sovina, não sendo ela quem me paga o ordenado.
Não te preocupes connosco. Estamos bem. Podemos sonhar. Não temos muita coisa, mas não nos falta saúde, e é nossa a melhor vista sobre Loures. Um horizonte sem fim, com colinas verdejantes. Aqui e ali, terrenos cheios de árvores de frutos e urbanizações a salpicarem a terra.
Em breve, terei duas terras…
O advogado acha que, no máximo até ao final do ano, terei a nacionalidade portuguesa. Depois, com a mesma certidão de nascimento do bisavô Oliveira, podemos começar a tratar da tua nacionalidade e da do Léu. O Zequinha, apesar de aqui ter nascido, não é português. O Dr. Onésimo explicou-me ser o sangue mais forte que o solo, e que o melhor mesmo é quando ambos se misturam na nação. Disse-lhe que, dentro de Portugal, existe uma África, existem negros portugueses.
Senti-me embaraçada, achei que não devia ter feito aquela afirmação.
Sem ar de censura, perguntou-me se estaria disponível para trabalhar como rececionista ou secretária. Havia reparado na qualidade das minhas cartas a ele dirigidas. Perguntou-me o que tinha estudado. Surpreendeu-se por eu ter um semestre completo de Direito.
Aguardo, mas sem ilusões.
O mano Léu escreveu-me. Pergunta-me se o Fidel pode vir e ficar comigo. É óbvio que a porta da minha casa está aberta ao meu sobrinho. Estando ele em Angola, mais dia, menos dia, será recrutado para as Forças Armadas. É melhor que venha o quanto antes. Senão depois não consegue sair do país. O que achas? Se concordares, avancem já com os preparativos, mas avisa o Léu que deve enviar um dinheiro. Aqui, eu darei um jeito com tudo o resto.
Falando ainda da nossa terra…
Contávamos todos com a paz. Por quantos anos mais os chefes irão continuar às turras? Estive com a irmã da dona Alberta da Vila Alice. Contou-me que perdeu a pouca família que tinha no Huambo. Os que haviam sobrevivido à Guerra dos 55 dias não resistiram à caminhada até Benguela. Um horror.
Por isso, não te preocupes, minha irmã. Aqui estamos melhor.
O pé de abacate pegou muito bem. Plantei-o perto da figueira e protegido do vento.
Vais adorar a surpresa que o Zequinha e eu te enviamos.
Lembra-te de que te amo muito e estás sempre comigo no meu coração.
Aguardo notícias.

Um abraço apertado, que te rodeie com o nosso amor.
Aurora

Lisboa, sexta-feira, 26 de setembro de 1997

Camba Viviane!

Feliz aniversário.
Os parabéns seguem atrasados, mas tenho a certeza de que serão recebidos com alegria.
Como estás? As filhotas? Os negócios? São muitas perguntas, eu sei. A culpa é tua, que nunca mais deste notícias. Agora és V.I.P.
A vida floresce. Com alguns espinhos, mas poucos.
Vamos às novidades:
Comecei a trabalhar num escritório de advogados, como rececionista. Não que tenha abandonado a dona Isabel. Foi sempre tão boa para mim. Um drama quando lhe disse que ia parar de fazer limpezas.
Lá me convenceu a fazer umas horas três vezes por semana. O dinheiro extra também ajuda.
A tua ex-patroa continua insuportável. Ainda hoje, não entendo como o ventre da dona Isabel gerou aquele diabinho.
Depois destes anos todos, finge não saber o meu nome. Se não fosse pelo dinheiro e pela velha, já tinha deixado aquela casa. Continua a referir-se a mim como «a coisa». Oiço-a enquanto fala com a dona Isabel, que lhe responde à altura: «A coisa tem nome. Chama-se Aurora. Repita: Aurora. Grande coisa é que você me saiu.»
A pedante ainda atreve-se a responder alto para que eu a oiça: «Ó mãe! Elas parecem-me todas iguais.»
Recuso-me a mostrar-lhe os dentes. Apetece-me responder-lhe, mas calo o bico. Quem precisa cala.
No outro dia, foi muito engraçado. A filha lá a conseguiu convencer a desfazer-se das rendas, das revistas e outras tralhas que estão no quartinho. Estive quase um sábado inteiro para cima e para baixo a carregar sacos para o lixo, e a dona Isabel sempre pendurada à janela. Perguntei-lhe a razão, ao que me respondeu: «Estás a esvaziar-me a casa. Não quero que a vizinhança pense que eu morri.»

Estou com namorado. O Caetano é mais novo. Não me perguntes a diferença de idades, porque não digo. Aconteceu sem que previsse. Ele é daqui do bairro e, quando andava à procura de alguém para remodelar a casa ele foi-me recomendado pela dona Bia.
É bastante habilidoso com as mãos. Quando virás a Portugal?
Não reconhecerás a minha casa. O Caetano, substituiu o oleado castanho que tapava o chão, por tijoleira branca. A cozinha agora está forrada com elegantes azulejos brancos e azuis. A canalização é nova e o telhado está arranjado. Fez tudo com as sobras de material de uma obra em que trabalhava em Sintra. Um luxo.
Da primeira vez que o Caetano foi lá a casa tirar as medidas, demorou-se desnecessariamente. Ia tirando as medidas, também a mim, confessou mais tarde. Ele é muito divertido. Leva-me várias vezes a dançar a Lisboa, prepara o melhor mufete que já comi e conhece muitas canções bonitas.
O Zequinha desconhece a nossa relação sentimental. Acha que é apenas um amigo da mãe. É melhor continuar assim até ter algumas certezas mais e, quiçá se o caso se tornar sério, envolvo o Zequinha. Por agora é namorico.

Olhando para trás, sou obrigada a reconhecer o quanto falhei no casamento com o Caló. Toda a situação retirou-me vigor. Andava exausta, ao espelho não reconhecia aquela mulher de lenço na cabeça, olhar vazio e lábios secos. Não era eu mesma.
Tudo me incomodava. Até o vento. O vento parecia não parar de assobiar. Seguia-me de dia e de noite, mesmo quando dormia sonhava com ele.
Fiz tantos sacrifícios. Vivia num teatro de sombras. Saía de casa para ir trabalhar com as luzes dos candeeiros das ruas ainda acesas. As portas das casas, uma a uma a abrirem-se e a fecharem-se, e nós a arrastarmos os pés e o pouco de vida, ladeira a baixo, até à paragem do autocarro, com os sacos nas mãos e os olhos semicerrados. Sem deles precisarmos, porque as pernas já conheciam o nosso caminho e os gatos também. Eramos tantas e tão sozinhas. Ali, a aguardar o autocarro vazio, que se encheria paragem a paragem de gente como nós.
Aka!
Graças a Deus que já passou.
Até um carrito já consegui comprar.
A minha preocupação agora é o Fidel. Meu sobrinho, filho do meu irmão Léu.
Está cá há dois anos, ilegal, e tudo o que consegue são trabalhos precários.
Passa o tempo todo nas ruas do bairro. Dia e noite. Ele e os outros miúdos estão num ciclo vicioso de onde não conseguem sair. Não trabalham porque não têm papéis e não têm papéis porque não lhes dão um contrato de trabalho. Depois, como sempre, disse a dona Isabel: «A vossa cor não ajuda.» Fazer mais o quê, então?
A nossa relação a cada dia que passa deteriora-se. Não sou sua mãe, mas sou tia e ele vive na minha casa.
O Fidel não respeita regras básicas. Como não lhe custa a ganhar não lhe custa a gastar. No Verão dorme com a ventoinha ligada e tem por hábito deixar as luzes acesas, mesmo não estando em casa. Não adianta eu até já ter colocado um papel colado ao interruptor para que ele apague a luz antes de sair de casa. O que mais me irrita é entrar em casa com os chinelos com que anda na rua. Enfim, habituado a caxicos.

Um beijo muito grande desta tua amiga,
Aurora.

P. S.: A Ti Olga do Rossio, aquela onde íamos comprar cola e gengibre, envia-te cumprimentos. Está cada vez mais gorda.

De: Aurora Oliveira <auroraoli@sapo.pt>
Assunto: RE: Fidel
Para: Léu <leonardooliveira@gmail.com>
Data: 23 setembro 2001 10:45:29 GMT

Querido irmão,

Espero que tenhas tido um feliz aniversário.
Volto-te a reencaminhar o meu email (vê abaixo) porque, não tendo recebido resposta tua, nada me garante que o tenhas visto.
Por aqui, vamos andado. Como se consegue, Deus quer e a vida permite.
Irei escrevê-lo sem rodeios, porque uma resolução urgente se exige: o teu filho ou irá preso ou aparecerá morto.
Não quero essa responsabilidade.
Ontem, a polícia veio bater-me à porta. Andavam à procura do Fidel. Acompanhei-o à esquadra.
Não me parece que ande metido em esquemas ilícitos, mas é certo que sabe o suficiente para arranjar problemas.
O bairro já não é o que era. Veio para cá muita gente nova. Ultimamente, até sai tiroteio e a polícia anda sempre por cá. Para teres uma ideia, ando com tanto medo que, para nossa segurança, tenho sempre os estores fechados.
Há boatos de que o novo presidente da câmara irá começar a demolição do bairro e entregar-nos casa. Não vou esperar. Sei que estas coisas demoram tempo. Já estou efetiva e vou entrar com um pedido de empréstimo habitação. A casa do bairro posso sempre alugar.
Tudo demora o seu tempo. Até lá, sugiro que encontres uma solução para o teu filho. O Fidel não pode continuar aqui no bairro.
Pede ao Caló que receba o afilhado em Roterdão. Será por um período limitado.
É o melhor para todos.
Aguardo notícias.

Um beijo grande da mana,
Aurora

De: Aurora Oliveira <auroraoli@sapo.pt>
Assunto: Feliz aniversário
Para: Márcia <marcia01tavares@gmail.com>
Date: 1 setembro 2002

Olá, Doutora!

Feliz aniversário.
Votos de muita saúde, paz e alegria.
Li a tua tese de doutoramento e estás de parabéns.
Tenho uma notícia que te irá deixar feliz: este mês, recomeço o meu curso de Direito.
Na quinta-feira, estive na secretaria da faculdade, a finalizar a papelada. Quando saí, começou a chover torrencialmente. Com o vento, o chapéu-de-chuva revirou-se e fiquei toda molhada.
Pensei, imediatamente, ser aquele um mau presságio. Parei, por um segundo, nas escadas. Deixei-me a sentir o frio, o vento e a chuva. A todos eles me tinha habituado e também à felicidade.

Beijinhos,
Aurora

Como de costume, Ndunduma marcou o nosso encontro no calçadão da Costa da Caparica, entre a praia do C-D-S e a praia do Marcelino também conhecida como a praia da Bola de Nívea, junto ao concorrido Café do Mar, ponto de encontro para surfistas e outros caçadores de ondas de toda espécie vindos dos quatro cantos da região da grande Lisboa. Eu, pontual como sempre e vindo da margem norte, cheguei mais cedo. Pousei a mala entre as minhas pernas e de costas voltadas para o mar esperei que ele aparecesse.

Não demorou! Roupas largas, Nike Air Force 1 imaculadamente brancos nos pés, dreadlocks atados e caídos até meio das costas, qual rapper orgulhoso por se identificar e o reconhecerem como tal. Vi-o ao longe, a atravessar  sem pressa o parque de estacionamento em frente daquele que já foi o Bairro da Mata, um ajuntamento de casas de construção improvisada e algumas dezenas de barracas que mal resistiam às rajadas de vento que assolavam a Costa quando o Inverno se apresentava mais rigoroso.

De onde venho, condições geológicas como um leito de cheias que durante o tempo que vivi em Mira Loures nunca ameaçou alagar ao ponto de temermos nascer ali um estuário,  atraíram os mesmos bulldozers que a pressão turística chamará anos antes para arrasar o que existia do bairro da Mata em que Ndunduma se mudará quando chegamos os dois a Portugal. Muitos dos moradores, ao contrário dos meus antigos vizinhos, principalmente os que se fixaram ali a mais de quatro décadas, deixar o topo daquele morro que de bonito só tinha mesmo o horizonte, a ampla vista sobre Loures, a vertical e vasta selva de pedra que é a cidade de Santo António dos Cavaleiros e toda a várzea agrícola cortada por auto estradas, era o que poderíamos chamar duma tragédia.

Já os antigos caparinquenses, apesar de terem sido despejados e realojados em paralepipedos de betão nos arredores do Feijó, reconheciam encolhendo os ombros, que a Costa está melhor comparativamente à época em que aqui viviam. “Está um bonito grão de Miami” – confessaram-me, quando se cruzavam comigo a caminho do mar da Costa ou nas avenidas do Centro Comercial do Colombo. Curiosamente, ainda identifico-lhes no passo demorado todo um gingado sincopado, inclinado ligeiramente para estibordo, de quem já viveu junto ao mar. Pergunto-me se também reconhecem em mim o mesmo gingado, já que tive a Praia Morena como uma extensão do pátio da escola e passei praticamente toda a infância com os tornozelos enfiados  no mar de Ombaka.

E foi com essa ginga que ele subiu ao calçadão, dirigindo-se em minha direção e trazendo um tabuleiro de xadrez debaixo do braço, como era rotina aos Domingos desde que chegamos de Benguela e manteve, mesmo vivendo agora fora da Costa. Se não o conhecesse diria que aquele volume que trazia continha cartas marítimas, porque olhava para o atlântico com a serenidade de um navegador, com o respeito de um adversário e a cumplicidade de um amante; diria até que tinha o olhar dos velhos pescadores da Baía Farta, quando se quedavam junto à água e às nuvens antes de zarparem para dentro do azul cobalto do golfo de Benguela. E não obstante, nunca o vi mergulhar no mar da Caparica. Diria até que nunca chegou a aprender a nadar.

Sentou-se no mesmo banco de sempre, abriu o nosso tabuleiro de xadrez que viajou conosco desde Benguela, arrumou as peças apressadamente e, não fora o facto de eu estar ali, deixar-se-ia ficar a observar as pessoas na praia, entregues às atividades costumeiras de quem tem a areia e o sol e todo o mar. Começou pelas peças brancas, e antes de passar para as pretas, disse-lhe. “Esta noite regresso para Angola” Ele olhou para mim e para a mala que tinha entre as pernas. Deve ter se perguntado porque que não o avisei e quando começou a enfileirar os peões pretos quebrou o silêncio com a questão que sabia que lhe era mais importante. “Onde arranjaste o dinheiro?”. Respondi-lhe que me havia sido emprestado quando na verdade, roubei-o, aproveitei um momento de distração quando a evacuação coletiva se iniciara em Mira Loures e por ser fim do mês, sabia que o tio Sikas, meu vizinho, estaria cachudo.

Sikas era gajo fixe, não era parente de ninguém que eu conhecesse mais todos o chamavam de tio porque quando pegava empreitadas grande, nos dava o toque para fazer uns biscates de pintura, sempre que essas fezadas surgissem, chama o Ndunduma para fazer um kumbu sujo, até que as rimas passagem a dar lucro. Desde que começou a levar a coisa mais a sério já lá vai uma década, nunca grandes quantias a circularem nos bolsos fundos das suas baggy jeans. E não por falta de talento, música não dá dinheiro e ele próprio sabe, tanto que para segurar as pontas, ele não se importava de me ajudar a paiar na Costa em troca de uma percentagem, uns sabonetes de chamon que comprava em Santo António dos Cavaleiros.

As pessoas que passam intrigadas com aquele quadro (um rapper, preto, sentado junto a um tabuleiro de xadrez aberto, numa praia), perguntavam se sabia jogar, ao que ele respondia sempre afirmativamente, com um sorriso. Esse gesto faz com que o transeunte se sinta convidado e se sente, desafiando-o para uma partida. Passei longas tardes naquele calçadão, a vê-lo jogar como se lhe tivesse baixado o espírito do mestre cubano José Raúl Capablanca, com algumas dezenas de turistas que passaram pela vila durante aquele mês de Agosto. Ninguém o conseguia bater; tal como eu, todas as pessoas que o desafiaram perderam repetidamente e de forma um tanto ou quanto humilhante. Ndunduma não gostava de praia, mas estar de frente ao mar, era o mais próximo que poderíamos estar de Benguela e o lucro que fazíamos com chamon, basicamente servia para refeições, transporte e vestir. Nenhum de nós tinha a disciplina para movimentar droga suficiente para pagar o nosso regresso para angola.

A última vez que vi Ndunduma na água, foi no tanque reservatório que tínhamos no quintal para cobrir as falhas de abastecimento quando havia as sabotagens na barragem do Biópio no tempo da guerra civil. Ndunduma e eu, encontramo-nos todos os dias no muro do quintal de minha casa, na esquina entre a Rua  Pedro Nolasco Pereira de Andrade e a Avenida Aires de Almeida Santos, o kota que escreveu o Meu Amor da Rua Onze, o primeiro poema que memorizei na ponta da língua. Chamávamos a  aquele cruzamento, a nossa esquina e a razão pela qual a declaramos nossa república, prendia-se com o facto de, durante todo o dia, cair ali a sombra de uma acácia majestosa, transformando aquele lugar no mais fresco da nossa rua e o único onde, sem muito esforço, se podia cheirar ou sonhar-cheirar as ondas da Praia Morena.

O episódio do tanque está ainda presente, porque no cacimbo anterior a aquela data, não arredamos pé da nossa esquina, disputando ali mesmo naquela calçada, intensos campeonatos de futebol de caricas, impulsionados pela vitória da Argentina de Maradona no Mundial-México-86. E um ano depois, estaria a passar as tardes a rondar o portão da Kalila, a dona do meu primeiro beijo que me inspirou a memorizar o Meu amor da Rua Onze e outros versos da antologia Poemas Angolanos que juntamente com os vinis que trouxe de Angola, me salvaram de morrer de saudade nas noites frias e agonizantes no alto do morro sobre o Talude Militar a que denominavam de Bairro Mira Loures.

Não sei de quem terá sido a ideia, mas a falta de interesse para o jogo de caricas e bolas de gude naquele ano, fez com que rumássemos às instalações desportivas do 1.º de Maio, com a intenção de nos inscrevermos no voleibol, no futebol de salão, no karaté ou, na última das hipóteses, na ginástica que tinha o acréscimo de ser frequentado pelas melhores mboas da cidade foi lá que vi a Kalila pela primeira vez. Corpo ágil, olhos amendoados e um sorriso que revelava dentes e gengivas numa combinação tronçante que nos deixa desarmados. Ela tinha os seios maiores que as miúdas da idade dela, que chamavam a atenção dos rapazes do último ano, que já fumavam e iam para as aulas só com um caderno e uma esferográfica ao contrário de nós que carregavam mochilas que pesavam o mesmo que 5 quilos de fuba. Quando ela passava, Ndunduma nunca assoviou e eu tão pouco mas sempre que passava pela nossa esquina curvava o pescoço do mesmo jeito para lhe tirar as medidas. Não foram poucas as vezes que ela me visitou nos sonhos, fazendo-me acordar com pau duro. Até hoje, quando preciso de varrer um pungo rápido, basta-me fechar os olhos e imaginar aqueles seios.

Ndunduma e eu, passamos aquela tarde no 1º de Maio a assistir a uma aula de cada modalidade, mas nenhuma nos convenceu; eram demasiado organizadas para o nosso gosto. Divertíamo-nos mais com as nossas peladas de bola de saco na rua ou a fazer corridas de de pneu em volta do quarteirão, ou  a jogar basquetebol em tabelas improvisadas quando um dos vizinhos com parentes em Portugal, aparecia com uma spalding novinha, até esta ser roubada e voltarmos as nossas bolas de saco. Decepcionados por não encontrarmos nenhuma actividade desportiva excitante, decidimos voltar para a nossa esquina, a fim de não perdermos as quitandeiras, que, no final da tarde vinda da estação de comboios, passariam por nós carregadas de cana de açúcar, a caminho do Mercado da Caponte. Porém, já na saída do 1.º de Maio, avistamos uma sala que, quase vazia e a meia luz, exibia nas suas mesas enfileiradas dezenas de tabuleiros. Nunca tínhamos visto tantos tabuleiros juntos e a solenidade do conjunto aguçou a nossa curiosidade; que jogo era aquele, cujo tabuleiro lembrava o que era usada no joga de damas mas cuja forma e ordem das peças eram diferentes? O instrutor convidou-nos a entrar e a aprender as regras do jogo. Ao fim de algumas horas e com a promessa de que regressariamos, foi-nos autorizado levar um tabuleiro conosco.

Não demorou para que a nossa esquina se travassem torneios com a intensidade de um Karpov vs Kasparov com direito a claque a apostas,  contagiando quase todos os que por nós passavam. Foi assim que Kalila, num daqueles dias, atraída pela multidão que se juntará a volta do nosso tabuleiro decidiu ficar e ver-me jogar. Não queria que me visse perder mas não queria deixar passar a oportunidade de lhe dirigir palavra. E quando Ndunduma que na altura estava longe de ser a versão angolana do Capablanca disse “Xeque mate” suspirei de alívio. Perdi aquele jogo mas ganhei um encontro para o dia seguinte no portão da casa dela, na hora da novela, quando toda população adulta da cidade teria os olhos postos no ecrã para assistirem mais um episódio do Cambalacho.

Enquanto Ndunduma, na qualidade de guardião do nosso taboleiro, dormia com rainhas e cavalos negros, para ele as peças favoritas do jogo ao ponto de um dos cavalos ter desaparecido sem deixar rasto. Em substituição colocamos um soldado de chumbo. Meu interesse no jogo, passou para segundo plano, estava mais focado em aperfeiçoar o meu dikelengo na tentativa de dominar a arte do chacho para as minhas  investidas noturnas ao portão da Kalila. Ela ouvi-me sempre muito atentamente, sorrindo quando uma frase, demasiado adulta para a minha idade soava como se não pertencesse a minha boca. As minhas mãos ficam suadas só de pensar na quantidade de linhas foleiras que lhe disse. Mas na altura aqueles sorrisos não me pareciam pedidos para parar, muito pelo contrário, me davam mais corda e coragem para primeiro buscar os lábios dela e ao fim de algumas semanas, quando, Naná o personagem interpretada por Fernanda Montenegro corria para pôr a mão no ursinho de pelúcia que escondia a corrente de ouro que lhe traria riqueza, as minhas mãos já se perdiam debaixo da blusa de Kalila, buscando os botões que formavam os seus mamilos.

No dia em que tentei tocar-lhes com a língua, ela puxou o meu rosto, mordeu o lóbulo da orelha e colocou a língua dentro do meu ouvido. Pela primeira vez, desconsegui esconder a minha ereção. Ela olhou nos meus olhos e com aquelas gengivas e dentes cintilantes, me ofereceu o seu sorriso de troça e anunciou que teríamos que parar com os nossos encontros. A novela havia terminado e até os serões da família voltarem a ser ocupados com outro programa, teríamos apenas o dia o que significava o fim do nosso romance, pois até então não nos tínhamos assumido como damos com direito a andar de mão dada a vista de todos. Ainda tentei pausar no 1º de Maio para lhe mostrar que tinha as qualidade necessárias para ser promovido a garino oficial mas ela friamente, apontou que a minha presença começava a dar bandeira diante das amigas da ginástica.

Na noite anterior a partida para Lisboa, não consegui pregar o olho. Tinha que me despedir da Kalila, e num ato impulsivo, foi rondar o portão da casa dela. Fiz o sinal que havíamos combinado para anunciar a minha a minha presença. Ela apareceu poucos minutos depois, pegou na minha mão e puxou-me, convidando para caminhar ao lado dela. Sem destino, demos uma volta ao quarteirão. Kalila, riu das minhas histórias, fez-me perguntas sobre o que contava encontrar em Lisboa e do que sentiria mais falta em Benguela, senti a vontade de apontar para ela mas o medo de arruinar aquele momento, segurou-me. Aquela era a primeira vez que revelavamos as nossas expectativas e ansiedades. Ela não gostava especialmente de ginástica, mas ia porque as amigas frequentavam. Nos prometemos escrever e enviar fotografias, coisa que cheguei a fazer não por ter me faltado vontade. Não saberia como enviar enviar-lhe poemas e outras foleirices que  denunciassem que passado esses anos todos contínuo panco por ela.

Quando nos aproximamos novamente do portão, perguntava-me qual seria a melhor forma de nos despedir-me. Um longo abraço, um linguado, os dois? Optei por estender-lhe o livro de Poemas Angolanos mas ela recusou, apontado que tinha um exemplar igual em casa. Fiquei fraco. Ela deve ter reparado que eu procurava no chão um buraco para me enfiar quando ela pegou na minha mão e disse. “Vem comigo mas não faças barulho”, Por instantes, fiquei sem saber o que significava aquele convite, mas ela abriu o portão e puxou-me para dentro, segui obediente e mudo até o fundo do quintal da sua casa, entre as pitangueiras e uma parede de samambaias, fora do alcance da luz que irradiava desde a marquise. Ela surpreendeu-me com um beijou o primeiro que não nasceu de iniciativa minha. Senti o seu corpo colar-se ao meu e de repente, tinha a mão dela dentro dos meus calções. Não ofereci-lhe resistência.

Vai acontecer, pensei para mim. Não era daquela maneira que tinha imaginado que seria a minha primeira vez, todos os cenários que construirá até então tinham-na como co-protagonista, mas sempre entre quatro paredes e com uma cama presente, num dia em que em que ninguém estaria em sua casa, já que na minha seria impossível pois há sempre gente à volta e a minha imaginação e carteira não permitia ir além dessas possibilidades. Aquele fundo de quintal foi uma surpresa aterradora, e se alguém nos apanhasse ali? Meus joelhos tremiam de excitação e medo. Kalila parecia segura, não a vi em momento nenhum desviar o olhar em direção a porta da marquise, ao contrário de mim que os tinha os olhos esbugalhados, ela tinha os seus semicerrados e soltará uma vogal continua numa leve, quase inaudível melodia de prazer.

E quando abriu os olhos, sem proferir nenhuma palavra, somente com os gestos, indicou-me o lugar onde deveríamos nos deitar, um pequeno luando feito de folha de palmeira, certamente utilizado para dormir sob a sombra das pitangueiras.

Ela voltou a atacar o meu ouvido, mordeu-o com mais força e fez deslizar a língua pelo meu pescoço, pelas duas pevides de goiaba que tenho a marcar o lugar dos meus mamilos. E quanto ela iniciou a descida final através do meu estomago, temia que a minha respiração ofegante como uma animal ferido, nos denunciasse. Ela colou os dedos nos meus lábios impedindo-me que inalasse todo o oxigenio do mundo. Quando fecho os olhos ainda sinto o cheiro do óleo mupeke nos seus cabelos. Aquele cheiro  extraído dos frutos da árvore Ximenia Americana que cresce na região do Namibe, vendido pelas mulheres mumuilas, que silenciosas e altivas, nuas das cintura para cima, com um pano trazido amarrado à cintura nunca cobrindo mais do que metade das coxas percorriam as ruas de Benguela irá acompanhar-me até o fim dos meus dias. Até porque antes de Kalila entrar na minha vida, os delírios sexuais volta e meia incluíam as moças solteiras, com os seus peitos a mostra adornados apenas com colares de missangas e pulseiras equilibrando na cabeça os litros de “omulela woyo mpeke”, nome dado, na língua do povo Kuvale e que a minha primeira amante assim como todas as mulheres a minha volta usavam para cuidar o cabelo crespo.

Kalila desceu a roupa que cobria a pélvis e até meio dos meus joelhos. Ela manteve a sua roupa no corpo. Levou a mão até a boca, umedeceu os dedos com saliva e com pulso firme desenhando um movimento suave, sem tirar os olhos dos meus, deliciou-se vendo o meu corpo contorcer-se de prazer e quando senti o calor da sua boca derreter a ponta da minha pila até esta desaparecer, o único gesto que me foi possível para não gritar e causar um sobressalto ao membros da família na sala de estar, foi esticar os braços e enterrar os dedos na terra e apertando-a na mão para que não me fugisse o chão. Quando finalmente ela me devolveu os sentidos e os meus músculos voltaram a relaxar senti na minha mão um pequeno objecto duro e familiar. O cavalo negro que fora substituído pelo soldado de chumbo.

“o que acontece em certas demolições”

1. (“tenho vindo a fazer a volta”)
ultimamente investigo passos de dança que nunca mais tinha dançado.
a terapeuta disse-me que pode ser bom (para voltar a fotografar) redescobrir coisas íntimas que nada têm a ver com o acto de fotografar. “nada” seria uma exagero. mas creio que entendi. não devem ser manifestações directas que me levem a fotografar, de imediato; e não devem ser coisas que alimentem esta limitação dolorosa que me assiste.
quero fotografar. é isto precisamente que não consigo explicar. querer, no sentido de haver desejo, sim.
mas é como se para fotografar, eu tivesse que cortar o cabelo. é só um exemplo. ainda bem que a terapeuta não me julga pelas maluquices que digo. aliás, tenta convencer-me que não são maluquices.
contudo, algumas das fotos que mostrei levaram-na a um silêncio radical.
o que me perturbou. mas isso não verbalizei.

2.(“a estrutura da ternura”)
hoje vi no meio de tantos patos, um cisne.
isso comentei com a terapeuta antes de tentar ir à dança.
a terapeuta perguntou como tinha sido o reencontro com a dança. e se já tinha sido.
creio que por vezes, sobretudo quase sempre, tenho muita dificuldade em falar do que não sei. ou que não sei explicar. não é a dança, quis dizer; apeteceu-me dizer. mas não soube dizer. é o modo de lá chegar.
“sim, concordo”, disse a terapeuta.
a terapeuta é muito bonita. não é uma fase da terapia. é mesmo bonita. vejo (ou quero ver…) tanta doçura nos seus olhos, mas sobretudo nos seus pés. não posso evitar e penso: “deve ser uma excelente dançarina”.
ao contrário de mim.
mas isso não digo.

3. (“a necessidade do trabalho”)
repito algumas vezes que me faz falta fotografar. a terapeuta faz perguntas, dá a entender que seria importante eu falar mais sobre isso.
a importância de fotografar. não sei se ‘tenho que’ falar sobre isso abertamente. não quando já tive que exteriorizar essa falta. é diferente de saber explicar o porquê. ou até de explicar por que tenho a necessidade de fotografar.
“trabalho ou prazer…?”
“deixe-me dar um exemplo. fotografia, vida, dança: é a surpresa…”
“não sei se entendi”
“é a surpresa que me fala, que me move. descobrir e fotografar. pressentir e revelar.”
“e o exemplo?”
“era um sapato”
“seu?”
“não. um sapato que fotografei. melhor dizendo, não sei se fui eu que fotografei. lembro-me de ter revelado essa foto…”
“foi uma surpresa?”
“sim”
“o sapato em si?”
“não. o que o sapato dizia…”

4.(“turismo militar”)
houve em determinadas guerras, por algum tempo, e quando era possível, e onde houvesse gente nisso interessada, o costume de se fazer turismo dentro da própria guerra.
não sei se chamaram a isso turismo militar. pode ser que sim. o nome, neste caso, não interessa.
“isso faz parte do seu trabalho?”
ao que eu sorri.
“o mundo faz parte do meu trabalho.”
“claro”, disse a terapeuta. “tem toda a razão.”

5. (“o que acontece ao perder-me nos voos”)
não perco voos. perco-me nos voos.
isso é também muito difícil de explicar. é no voo, onde nada acontece, nesse céu, que me ocorrem as fotos que não posso tirar.
“de lugares que não existem?”
“de lugares onde, nesse instante, eu não estou.”
voar, digamos, não é humano. nós andamos, a cada voo, a imitar coisas não humanas.
“um dia pode dar mau resultado…”
“um acidente?”
“ou pior: uma revelação inesperada”
“quer dar um exemplo?”
“sabe o que estava escrito no sapato azul que fotografei?”
“só saberei se me disser”, disse a terapeuta com um ar neutro que me incomoda.
“you and me”
“era isso que estava escrito?”
“sim”
“para onde a levou essa frase?”
“para uma exposição. algumas ideias. a própria dança. tudo isso tem que ver com o medo. os medos…”
“o que vai fazer com isso?”
“vou preparar vinte e um temas para uma exposição. nomes isolados, frases que me acompanham. será uma pequena grande celebração. sobretudo há de fazer-me bem.”
“por quê?”
“porque decidi que o farei sem julgamentos.”
a terapeuta pareceu sorrir, mas tentou não fazê-lo.

6. (“o código postal da estrada vazia”)
o endereço onde haveria a dança parece uma estrada vazia.
confesso que estou cansada de dizer “parece que”. é nitidamente um medo de assumir e de dizer as coisas. vou recomeçar:
o endereço do lugar onde eu iria dançar é uma estrada vazia. não está lá uma casa, um galpão, algo que abrigue um grupo de dança.
mas, logo no início, há uma placa com um código postal. mesmo a estrada vazia tem um código postal. fico assim com menos dúvidas sobre a existência da rua. continuo com dúvidas quanto à existência do lugar de dançar.
mas é óbvio: há sempre muitos lugares de dançar. muitas ruas, galpões, casas de dançar. há também o lugar de dentro. onde também se dança.
isto não consegui dizer à terapeuta: é por dentro que não tenho conseguido dançar.
se dançar por dentro fotografo melhor por fora?
se fotografar por dentro… saberei dançar por fora?

7. (“novo ataque no centro do meu peito”)
sobre isto gostaria de poder falar à terapeuta.
de algum modo associo os ataques ao meu peito ao não conseguir fotografar.
encontrei uma boneca de trapos que me pediu para ser fotografada. pedir também é uma coisa de dentro. dentro dela. dentro de mim.
“no fundo devo eu ter pedido à boneca de trapo para fotografá-la…”
“no entanto nem a boneca falou consigo, nem você falou com a boneca… há algo nesse processo que seria importante que visse. e assumisse.”
“eu quis fotografar…”
“sim. você quis fotografar.”
consegui falar da boneca de trapo, mas não pude dizer o modo como não a fotografei. o início já se dera. a vontade, a mão, o momento, até a luz. mas um forte ataque ao centro do meu peito não me deixa nem sequer ficar em pé. ou caminhar. ou pensar. ou agir. nem agir instintivamente.
“se tivesse que fotografar esse ataque…. como seria a fotografia?”, imaginei que a terapeuta me fazia essa pergunta.
e devagar, entre hesitações por dentro, entre choro e inquietação, nas poucas pausas que a respiração me cedeu, imaginei que eu poria a questão de outro modo:
“se eu pudesse fotografar esse ataque, destrui-lo-ia… queimá-lo-ia em vez de o fotografar.”
“muito bem. hoje ficamos por aqui.”

8. (“demolições de bairros e de pessoas”)
nem sempre fotografei mas sempre me interessei por demolições. portos. cidades. bairros.
mas o que me atrai são as demolições de pessoas. intriga-me como se fala de demolições sem referir, tantas vezes, as pessoas. muitas vezes até lembram-se de referir os animais, as árvores. isso está muito bem.
mas e as pessoas demolidas?
uma pessoa demolida ou em demolição, será que se sente mais atraída pela fotografia, pela dança, pela demolição, do que as pessoas que não estão em demolição?
“qual é a sua opinião?”, perguntou a terapeuta.
voltei a ver os seus pés. as sandálias delicadas. um anel no dedo. certamente ela não crê que ninguém nota o anel no dedo do pé.
“eu penso que posso planificar uma exposição fotográfica. também posso planificar a demolição do meu peito. cessaria assim a possibilidade de ataques.”
“bem como o próprio peito…”, disse a terapeuta, e descruzou a perna que tinha o pé com o anel no dedo.

9. (“doei um bolo pequeno demais”)
tenho vindo a fazer as anotações que a terapeuta sugeriu.
uso as que posso nas sessões, uso outras para o meu dia a dia. uso outras para a exposição que um dia farei.
quando voltar a fotografar.
quando puder dançar dentro ou fora de mim.
gosto da ideia de serem pequenos capítulos que chegam da vida ou dos sonhos ou de mim ou dos outros ou das dores ou de fotos que ainda não fiz ou de músicas que se apresentam como reflexo de algo ou como lembranças que distorço ou como títulos para poemas que nunca escrevi ou como fragmentos de coisas minúsculas mas importantíssimas que fazem parte daquilo que também sou.
de certo modo, desconfio, mas ainda não me consigo dizer: acho que é uma espécie de dança comigo.
anotei o título ‘doei um bolo pequeno demais’ por causa de um sonho: era eu a ir a um lugar onde se doavam coisas e havia uma criança com o peito em demolição então no lugar de um brinquedo eu levei um bolo feito por mim que não sei fazer bolos. a senhora que me recebeu comentou de imediato que o bolo era pequeno demais e quase desatei a chorar mas vi que a criança olhou o bolo e achou que era o presente ideal para aquele momento.
mesmo no sonho, mesmo que tenha sido apenas um sonho: o meu bolo pequeno demais travava o processo de demolição dentro daquela criança.

10. (“acabei por doar imagens”)
num outro sonho, eu voltava a esse lugar de doações. estranho nome, estranha palavra, estranhas acções. mas lá voltei.
lá voltei a encontrar os que dão as coisas que já não precisam e que por vezes vão cheias de pouco-amor por já não servirem.
fui lá doar imagens que eram importantes para mim. e até valiosas do ponto de vista comercial. creio que a minha agente não gostará nada de saber disso.
“e sentiu-se bem?”, perguntou a terapeuta; mas não tinha, nesse dia, o anel no dedo do pé.
“senti que essa doação travava um milímetro o processo de demolição do meu peito.”

11. (“o processo de não tatuagem”)
nunca quis fazer uma tatuagem, mas não era por causa das transfusões de sangue.
era pelo arrependimento.
“que arrependimento?”
o de ter essa fotografia impressa na pele e não poder mudar as fotografias expostas no meu corpo.

12. (“diretrizes para o planeamento de uma demolição”)
depois de visitar aquela instituição, mais à noitinha, permiti-me chorar.
“fez-lhe bem?”
creio que sim. gosto desse choro que pode vir a ser útil. que me faça sentir melhor. que me limpe de algo. que me deixe num outro lugar.
“o choro é uma travessia…”, disse eu à terapeuta.
depois da travessia, quase sempre, o que nos acontece é estar num outro lugar.
cheguei a casa e permiti-me chorar porque não tinha como inventar, para mim, uma explicação que me atenuasse a dor.
“qual dor?”
a que me dói quando vejo crianças com o peito em demolição. chorei também por mim: eu já não sou criança e ainda tenho o peito em demolição.
“existem outros caminhos?”
a demolição sem planeamento. a demolição com planeamento. o que se constrói depois da demolição. se nada se constrói depois da demolição.
“agora refere-se à demolição dos bairros?”, perguntou a terapeuta.
“não. refiro-me ainda à demolição de pessoas.”
“no geral…?”
“às vezes o geral é um modo de falar de mim. confesso que muitas vezes planejo a demolição do meu peito e em simultâneo sinto que gostaria de não ter que o demolir.”

13. (“havia pele na fotografia extinta”)
poucos assinámos o documento. muitos assinaram o outro documento.
“desculpe, a que documentos se refere?”
o documento que tinha poucas assinaturas autorizava.
o documento que tinha muitas assinaturas não autorizava.
“era a autorização formal para uma demolição?” a terapeuta tentou que eu explicitasse.
mas eu não queria ser tão explícita.
“era justamente a autorização informal para a destruição de um arquivo fotográfico.”

14. (“fotógrafo luta para que o autorizem a destruir fotos do seu passado”)
segundo o fotógrafo, que queria muito não ter a obrigação de explicar tanta coisa sobre um determinado processo de demolição dentro de si, pretendia que lhe permitissem, judicialmente, destruir um arquivo que foi criado, mantido, inventado, fotografado por si.
entendia que a destruição dependia de uma decisão judicial.
mas alegava também que a destruição deveria, isso sim, depender de uma decisão pessoal e humana. sua.
eu assinei o documento com poucas assinaturas, o que autorizava a destruição do arquivo deste fotógrafo porque, segundo ele, era esta a sua vontade humana actual; e o arquivo, ainda que fotográfico, continha uma camada de pele com recordações que ele já não pretendia deixar inscritas no mundo.

15. (“sete exposições sobre o fim do mundo já em fins de fevereiro”)
foi bonita a dança.
“dançou?”, perguntou a terapeuta.
“não. apenas fui ver dançar.”
era uma provocação e resultou. alguém marcou para o dia trinta de fevereiro uma série de exposições, em dança, sobre o fim do mundo. e usaram fotos minhas.
“sentiu-se bem com o uso das suas fotos?”
“sim, senti-me bem. justamente por ter acontecido a exposição no dia trinta de fevereiro. achei apropriado.”
“e que danças viu?”
“danças penduradas em pessoas. foi na rua. no dia vinte e oito.”

16. (“etnografia dos bairros invisíveis”)
os passos que não tinha dançado é um modo de dizer e de tentar fotografar as fotografias ou instantes ou pessoas ou bairros ou demolições ou peitos que ainda não fotografei.
o modo de tentar começar a dançar, dentro ou fora de mim, é o modo de regressar à fotografia.
seria também o modo de entender a razão de não conseguir fotografar.
“consegui fotografar um cisne no meio de tantos patos…”
“já revelou essa fotografia?”, perguntou a terapeuta.
“não. não foi com a máquina de fotografar. fotografei apenas com o peito.”
não creio, anotei no ponto dezasseis do meu bloco de apontamentos, que os bairros invisíveis sejam invisíveis.

17. (“onde ficar”)
uma das fotografias que não chegou a ser vista na exposição que não aconteceu no dia trinta de fevereiro tinha um título que poderia ser uma frase minha ou parte de um pensamento que me faria escrever sobre outras coisas:
‘onde ficar nos melhores bairros demolidos sem ter de lá ficar’.

18. (“por baixo das demolições”)
há uma coisa que me tem despertado a curiosidade para voltar a fotografar.
“está relacionado com a dança?”, perguntou a terapeuta.
“talvez tudo esteja relacionado com a dança…”, deu-me vontade de sorrir com o que eu própria diria depois: “até a Terra dança. tudo é movimento. ou pausa. ou grito. ou silêncio.”
“quando é que grita?”, a terapeuta conseguiu surpreender-me.
a questão não era o quando. era o como.
tenho estado a gritar em silêncio. por vezes gritava ao fotografar. por vezes, numa discussão, também chegava a gritar. ao espelho, gritei algumas vezes mas fechava os olhos com medo de ouvir todo o grito.
ultimamente, grito para dentro.
“acha que isso pode ser um dos modos de demolir o seu peito?”

19. (“recolhi objetos das pessoas que viveram aqui”)
descobri um modo de começar a tentar dançar.
“é um lugar de dança?”, perguntou a terapeuta.
é apenas um modo. os objectos que me atraem, que recolho, que me chamam, que me falam, aos quais eu posso falar com doçura ou fotografia, esses objectos mais cedo ou mais tarde creio que me podem fazer dançar.
“e a música?”
com ou sem música.
a música por vezes são as estórias ou as vidas ou as anotações ou as coisas escondidas no peito das pessoas que viveram aqui.
“aqui… onde?”
“dentro ou fora de mim.”

20. (“um questão de dentro”)
no ponto vinte anotei algo que tinha que ver com a terapeuta.
no dia seguinte consegui falar sobre isso.
“se eu fizesse uma exposição… poderia contar com a sua presença…?”, olhei para baixo, embora a terapeuta tenha esperado que eu voltasse a olhar para ela para me dizer o que disse:
“seria a trinta de fevereiro?”
sorrimos.
“não. uma exposição com fotos reveladas e, digamos, com um acesso concreto a ela. eu poderia contar com a sua presença?”
a terapeuta esperou que olhasse para ela.
“o importante, de verdade, é que você esteja lá.”

21. (“estes objetos levo para o meu peito”)
ultimamente investigo os primeiros passos de dança que me apareceram depois das visitas aos bairros, às pessoas, aos lugares de dentro e de fora. também visitei objectos e sensações.
inaugurei a exposição num dia qualquer a meio do mês, não me lembro do número ou do nome desse dia.
danço devagarinho. pressinto uma não demolição.
com restos de coisas que reconheci como ‘coisas delicadas’, inaugurei a exposição dentro do meu peito.

Manuela Ribeiro Sanches

É assim que, de certo modo, o autor surge, finalmente, como um solitário. Um insatisfeito, não um líder. Não um fundador, mas um desmancha-prazeres. E, se quisermos imaginá-lo em si mesmo na solidão do seu ofício e das suas intenções, então vemos um trapeiro, cedo na madrugada, recolhendo com o seu bastão trapos de fala e farrapos de língua para os lançar, resmungão e obstinado, um pouco inebriado, no seu carreto, não deixando, de vez em quando, de fazer esvoaçar, trocista, na brisa matinal, um ou outro pedaço dessa chita desbotada de ‘humanidade,’ ‘contemplação,’ ‘imersão.’ Um trapeiro, cedo, na madrugada do dia da revolução.” Walter Benjamin.i

Dez anos. Dez anos que vieram depositar-se sobre um texto escrito em torno de alguns trabalhos de Mónica de Miranda,ii onde se abordava o modo como, na Europa, mais precisamente em Portugal, na área metropolitana de Lisboa, se reproduziam as mesmas fronteiras, e delineavam os mesmos limites que a União Europeia vinha, então, impondo e continua, inexoravelmente, a impor. Fronteiras que o trabalho Underconstruction interrogava e reelaborava, introduzindo novas dimensões inesperadas nas abordagens habituais aos chamados ‘bairros problemáticos.’

Abordagens que replicam fronteiras resultantes de políticas e de mentalidades herdadas de velhos e novos colonialismos que, em vários contextos, mais ou menos restritos, dos sociais aos académicos, insistimos em condenar desde o século passado, para os vermos ressurgir, agora mais ameaçadores do que antes, num mundo cada vez mais desordenado por grandes interesses e pequenos tiranos, tão irresponsáveis quanto ignorantes, alimentando formas de xenofobia e de racismo próprios de nacionalismos crescentemente definidos como puros, étnicos, absolutamente iguais a si mesmos.

As mensagens da hibridez que a teoria pós-colonial não se cansou de proclamar – apropriadas, por vezes, de forma excessivamente ingénua ou otimista, quando não seguindo negligentemente mais uma voga, a ponto de se terem tornado quase desinteressantemente hegemónicas em alguns discursos académicos e artísticos – também em Portugal – revelaram-se pouco eficazes, porque indiferentes, a maior parte das vezes, às desigualdades económicas que a crise económico-financeira deste século viria a reforçar. Desigualdades agravadas pela diferença da cor da pele ou da origem, sendo os diferentes imigrados, e seus descendentes, ainda considerados ou como cidadãos de segunda ou como intrusos que, cada vez mais, há menos que tolerar do que evitar, quando não rejeitar.

Com efeito, o século XXI parece comprovar que a ideia de uma educação do género humano que o projeto iluminista antecipara era apenas isso, uma ideia, um sonho, que a realidade crescentemente racista e nacionalista vem desmentir a cada dia que passa, nomeadamente em Portugal. Com efeito, se as reivindicações de afrodescendentes ou de ciganos portugueses se tornam crescentemente audíveis na esfera pública, elas desencadeiam uma violência que põe a nu os limites do consenso de um país de brandos costumes e de benignidade lusotropical herdado do velho Estado novo, consenso que nem a Revolução descolonizadora de Abril viria a abalar, as fronteiras físicas e mentais, sempre presentes, – embora silenciosas. São estas fronteiras que se tornam, agora, ameaçadoramente cada vez mais audíveis, não só nas redes sociais, mas também no emergir de uma extrema-direita abertamente racista no parlamento português, secundada por fazedores de opinião primária nos media, cuja popularidade crescente só poderá ser explicada pelo assentimento de quem os consome e aplaude. Surge quase inofensivo o clamor e as fake news que rebentaram, em 2005, em torno do célebre Arrastão na praia de Carcavelos,iii quando comparados com a violência mediática com que foi abordada a ‘invasão’ do centro da Lisboa dita multicultural e cosmopolita, quando jovens portugueses negros desceram até aí para se manifestar contra a violência injustificada da polícia no bairro da Jamaica no Seixal, que redundou em novas agressões,iv mais uma vez injustificadas, violência que, agora recrudesce em novos incidentes que dão origem a novos protestos,v bem como a novas manifestações de racismo,vi ou ainda a declarações preocupantesvii por parte de quem deveria zelar pela tranquilidade pública.

Simbólico é o facto de existirem espaços, desde os de lazer aos de convívio cosmopolita, que parecem continuar vedados a esses ‘cidadãos de segunda,’ que clamam cada vez mais pelos seus direitos e a sua pertença, na sua diferença, a um Portugal que se quer cada vez menos diverso.

A gentrificação acelerada da capital, transformando a cidade num resort para europeus de um Norte da Europa mais abastado do que o seu Sul, varrido este por uma austeridade destruidora, vai também afastando, quando não expulsando, os seus ‘indígenas,’ porque demasiado velhos ou demasiado pobres, para os novos bairros que surgiram na senda da destruição que Mónica de Miranda registou nas suas fotografias e imagens dez anos atrás. O que não impede que os enclaves menos nobres da encosta oriental da antiga Lisboa, não vejam a continuação da fixação de imigrantes, agora maioritariamente do Bangla Desh e do Nepal, hesitando esses lugares entre um enobrecimento para turista ver, que as autoridades gostariam de apressar, e a insistência desses recém-chegados em se apropriar de espaços abandonados pelos menos afortunados, colorindo, de forma inesperada, a cidade, sem que os problemas da exclusão e do silenciamento – desde os económicos aos psicológicos – se deixem de fazer sentir, ignorados, também sempre, pelos poucos que têm acesso garantido a espaços públicos e mediáticos.

Mas fora destas questões mais gerais, a que há muito os cientistas sociais se têm vindo, de modo mais ou menos etnográfico, a dedicar, que resta, finalmente, das pequenas estórias a que esses contextos socioeconómicos – também eles resultado de políticas que as determinam – também dão lugar?

Ora, é precisamente no ponto em que essas duas realidades, a pessoal, das estórias, e a pública, das políticas, se cruzam, ponto em que o quotidiano dos indivíduos que habitam as cidades e as grandes decisões governamentais sobre urbanismo se intersectam, que o trabalho de Mónica de Miranda se vem instalar – mais uma vez –, decorrida uma década, a fim de tornar mais audíveis e visíveis as vidas daqueles que são constante, reiteradamente, subalternizados.

Regressando sempre à ideia de migração como fenómeno social e categoria política e teórica, Mónica de Miranda revisita temas e trabalhos anteriores em torno desses processos de exclusão, marcados por fronteiras que a antiga estrada militar fortificou, desde finais do século XIX, em tempo de invenção de tradições nacionaisviii, com os seus hinos, monumentos e homogeneização de um passado, que sempre se caraterizou pela diversidade, para se deter no outro lado do progresso, que esse século de otimismo voluntarista quis materializar, mas que já o século XX desmentira.

Ruínas a recordar cidades destruídas por guerras persistem – antes, seria a Bósnia, numa antiga Jugoslávia dividida por lutas tribais, antecipando os purismos étnicos que agora alastram por toda a Europa e mundo; agora poderia ser Alepo ou outras localidades esventradas por conflitos assentes, também, em ideologias religiosas, que interesses geoestratégicos da nova desordem mundial aproveitam, manipulam, em proveito próprio.

Lugares devastados pelo progresso desigual que deixa um rasto de ruínas que a câmara fixa sem comentar.

Mas há também objetos quotidianos, desde cassetes de vídeo a brinquedos, passando por certidões de nascimento, procurações ou redações em inglês sobre o vestido azul com que sonhou – e encontrou –, entre muitos outros artefactos, como sapatos, peças várias de vestuário, artigos de limpeza, manuais de economia política, fragmentos de azulejos, discos vinil, CDs, bobines e cassetes, que, nas fotografias de Mónica de Miranda, surgem destacados, isolados, do seu contexto, finalmente arquivados, para narrarem, de forma tão eloquente quanto enigmática, estórias de vida anónimas, mas plenas de particularidades.

Vestígios, que, com as suas estórias silenciosas, Mónica de Miranda se recusa tanto a narrar como a ignorar, a esquecer, criando a possibilidade de imaginarmos a complexidade desses passados, que a artista, com a sua objetiva, escava, tal arqueóloga desses não-lugares abandonados pelo chamado progresso, buscando nesses detritos biografias de indivíduos interrompidas pela modernização.

Tal trapeiro que sai de madrugada (Benjamin)ix, atento aos vestígios, aos pequenos nadas, que preencheram o quotidiano daqueles que, desalojados, os tiveram de deixar para trás, na pressa da partida ou apanhados de surpresa por essa onda de progresso, a câmara colige, sem ordem nem hierarquia, esses objetos, essa desolação que, em tempos, foi o lugar de encontro possível com os sítios de onde se veio e aqueles a que não querem que se pertença, mas a que ligam novos afetos, experiências, numa pluralidade de histórias, de origens e de raízes espalhadas através de múltiplas rotas entre lugares.

Mónica de Miranda não tenta decifrar ou impor um sentido, em suma narrar esses contos de Lisboa, quando regista testemunhos de trânsitos entre, e a pertença a, múltiplos lugares, colecionando sons e imagens,x que arquiva, aleatoriamente, sem que, por um momento, incorra na tentação de lhes sobrepor uma qualquer voz autoral, atenta às narrativas que evocam sonhos e expetativas, a maior parte das vezes frustrados, dessas vidas em trânsito físico e emocional entre Lisboa e a Praia ou Luanda, Portugal e Cabo Verde ou Angola, a Europa e a África.

***

Walter Benjamin escreveu, a partir de Marcel Proust, que a recordação reifica o passado, enquanto que a memória, a involuntária, na sua arbitrariedade, é capaz de guardar a experiência.xi Pois “[a memória] é um meio de aproximação ao vivido, como a terra é o meio sob o qual as antigas cidades se encontram soterradas.” Por isso, “aquele que pretende aproximar-se do seu passado soterrado tem de comportar-se com um homem que escava. Sobretudo, não deve recear regressar constantemente ao mesmo conteúdo – espalhá-lo como se espalha terra, revolvê-lo como se revolve o solo.”xii

Ora, o arquivo que Mónica de Miranda vem construindo obsessivamente, revolvendo o solo do passado e os seus vestígios presentes, nada possui de autoritário, antes se aproxima do gesto do colecionador benjaminiano, arbitrário e compulsivo,xiii que, por isso mesmo, se escusa e escapa a qualquer impulso sistematizador, permitindo que a perplexidade e a interrogação venham depositar-se sobre essas imagens, com tudo aquilo que podemos – e, sobretudo, não podemos vir a – saber sobre esses lisboetas de corpo e a tempo inteiros – invisíveis e madrugadores, como o trapeiroxiv –, sem os quais o resort turístico em que Lisboa se transformou não conseguiria sequer funcionar. Arquivo, pois, menos para recordar, do que para conservar – na sua incompletude, tanto mais eloquente, porque concreta – fragmentos de passados e presentes que insistimos em não (querer) ver ou ouvir.

O que estes contos de Lisboa oferecem é, assim, menos uma história coerente do que um convite a que se aprenda a disponibilidade para decifrar estes vestígios, fragmentos de experiências únicas, memórias de vidas e também de uma cidade. Imagens, objetos encontrados ao acaso, pois “ao colecionador acontecem as coisas, ele não as escolhe,”xv objetos que, no seu despojo, vêm interromper a história hegemónica, que só conhece a consagração unívoca, banalizadora, de atrações turísticas, que nem todos podem partilhar. São esses outros passados que, despojados da sua aura,xvi são, contudo, resgatados pelo olhar e pela atenção da câmara da artista. Sem que este olhar se transforme em programa de denúncia política ou panfleto social, desmanchando tão só, mas não menos convincentemente, os prazeres e as malhas tecidas pelas narrativas duma sociedade que gosta de se ver como tolerante e cosmopolita, ignorando muitos dos que, há muito, a constroem. Diariamente.

i Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in Gesammelte Schriften. Band III: Kritiken und Rezensionen, Hrsg. von Hella Tiedemann-Bartels, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 219-225, aquii. p. 225.

ii Manuela Ribeiro Sanches, Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade,” in Mónica de Miranda e Paul Goodwin, Lisboa: Direcção-Geral das Artes, 2009, pp. 26-28.

iii Diana Andringa, Era uma vez um arrastão. 2005. In: https://www.dailymotion.com/video/xe4px. Consultado em 10 de fevereiro de 2020.

viii Eric Hobsbawn, Terence O: Ranger, The Invention of Tradition, Cambridge [Cambridgeshire]; New York: Cambridge University Press, 1983.

ix Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in op. cit.

x https://postarchive.org/arquivo/

xi Idem, „Charles Baudelaire, Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus,“ in Gesammelte Schriften. Bd. I, 2. Abhandlungen. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 509-90, aqui, pp. 610-11.

xii Idem, „Denkbilder“, in Gesammelte Schriften. Band IV.1, Kleine Prosa. Baudelaire Übertragungen. Hrsg. Tilmann Rexroth, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 305-438, aqui, p. 401.

xiii Idem, “Der Sammler“, in Gesammelte Schriften. Band V.I, Das Passagenwerk. Hrsg. Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 269-280.

xiv Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in op. cit. p. 225.

xv Idem, „Der Sammler“, in op.cit, p. 272.

xvi Idem, “Charles Baudelaire, Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus,“ in op. cit., p. 646.

No museu do meu passado

raquellima, 04/05/2020

 

Já não me recordo ao certo da minha missão naquele bairro, mas a minha existência ali respondia a algum propósito, talvez até profissional. Ao mesmo tempo, a familiaridade do lugar era imensa e sentia-me em casa. A certa altura, estavam crianças a jogar à bola. Crianças negras, descalças e felizes. Produziam, enquanto jogavam, aquele ruído impercetível entre conversas, gritos e gargalhadas. Tentei ladear o campo enquanto atravessava para não distrair a animação do jogo, e quando vi uma projeção direta de luz solar na fachada de um prédio pensei “é aí que me vou sentar”.

Não era apenas a fachada de um prédio, era uma espécie de canto. Um lado do prédio com uma pequena profundidade para me permitir sentar no chão e ficar cercada por três paredes, apenas com a vista frontal recortada por duas linhas verticais. Eu continuava a observar as crianças enquanto desfrutava do sol na cara, através de um recorte dos seus movimentos quando cruzavam o meu horizonte.

Mais tarde compreendi que outras crianças brincavam às escondidas e isso despertou em mim a sensação de fazer parte do jogo já que, desde aquele canto, também estava escondida. E foi essa sensação vívida e confortável de ser criança que desencadeou a viagem até ao museu do meu passado.

Fiquei pequena de novo. Virei criança. E gradualmente aquele lugar tornou-se cada vez mais reconhecível: era a nossa antiga casa na Quinta da Serra, mas emparedada e transformada em museu. Nós erámos duas crianças – talvez irmãs, não estou certa – e estávamos a ser guiadas por alguém nessa visita. Talvez fosse a nossa mãe, mas também não tenho a certeza, apenas a sensação de uma presença maternal, adulta, familiar e protetora que nos levava a esse passado, a reconhecer o local onde tínhamos vivido parte da nossa infância, quando ao mesmo tempo já não habitávamos aquela casa há muito tempo. Coisas de sonhos…

Íamos relatando, freneticamente, à nossa “mãe” o quão bem conhecíamos os cantos daquele lugar. Lembro-me de subir três degraus que davam para uma porta interditada e dizer “Sim! Nós subíamos e entrávamos por aqui!”. Estava a ser surpreendente revisitar esse nosso lugar, desengavetar estímulos, gestos e memórias.

Até que reparámos que não éramos as únicas pessoas no espaço. Aquele momento já não era uma exploração íntima de um sítio que nos pertenceu ou ao qual pertencemos, mas sim um museu com vitrines, mesas de exposição e pessoas a circular pela divisão onde estávamos. No centro daquele pátio museológico, escancarado a céu aberto, estava uma mesa enorme com um tampo de vidro que descrevia a história do lugar. Por perto, circulava um guia que ia explicando a alguns visitantes, de forma indistinta, a biografia das peças. Foi muito assustador compreender que a nossa vida privada e infantil se tinha transformado num museu, ainda mais sabendo o que tinha acontecido naquela casa, com aquela vassoura cor de rosa…

Aproximei-me, timidamente, da mesa. A “mãe” que nos guiava tentava acompanhar-nos com o seu corpo presente. Tentava mediar o que víamos. E qual foi o meu espanto quando vi que existiam mais vidas do que a nossa vida naquele museu. Até uma maquete em madeira de um barco enorme dentro do expositor, porque aparentemente tinham descoberto o original enterrado naquela localização. Não compreendi exatamente essa parte da narrativa, mas era a que mais merecia destaque no que se queria contar com aquela exposição. Era algo maior que tornava o espaço digno de ser apresentado a um público.

Ainda assim, eu continuava curiosa e ansiosa para saber se a nossa vassoura cor de rosa tinha sido considerada na exposição, numa mistura de vontade de reconhecimento da sua importância e receio da explanação do seu significado. E foi então que a “mãe” apontou para a fotografia, reservada a um canto da mesa, sem moldura, triste… catalogada seriamente com legendas e explicações, mas como uma mera curiosidade, um detalhe, até certo ponto insignificante, perante a grandeza do evento. Eu fiz questão de transgredir as regras do museu e agarrar na foto, observá-la bem de perto, em todo o seu esplendor.

 

Acordei desse sonho a chorar compulsivamente. Dos choros mais honestos que já solucei. Mas curto, como sempre. Rapidamente recalcado e oprimido quando começa a fluir autonomamente. Ao contrário de todas as outras vezes em que interrompi o meu choro, desta vez deu para sentir a densidade que ele carrega no meu peito. Deu para visualizar a bola imensa que sobe lentamente enchendo o meu tórax, a caminho da garganta. Como o pássaro azul de Bukowski ou como a minha vassoura cor de rosa… seja como for eu engoli, rapidamente, essa subida. Mas desta vez com a certeza de que algo existe e terá de sair mais tarde ou mais cedo e que, enquanto estiver lá/cá dentro vai sempre pesar, e fará sempre estragos. E talvez o maior estrago seja essa hesitação entre escrever lá ou cá, a minha constante compulsividade em exteriorizar-me, viver fora do meu corpo, ou fora das minhas emoções mais profundas.

Não é por acaso que chamei a este caderno “livro dos sonhos ou da auto psicanálise”, porque existem sonhos que só podem ser arquitetados para nos ajudar a compreender quem somos e onde estamos.

E talvez o museu represente a história da minha família, sem tempo e espaço lineares, apenas um museu amorfo onde todos os instantes se encontram. Gosto de acreditar que sim, que seja essa a metáfora por detrás do meu sonho, enquanto volto a chorar, desta vez desmesuradamente. Choro porque as recordações em torno da vassoura cor de rosa dizem-me que não tive uma infância simples e sinto-me culpada até hoje pelas tragédias que não cometi. Choro porque essa criança nunca se curou, nunca se sentiu amada e nunca soube reconhecer o amor. Sempre acreditou que o amor se encontrava nos outros e na forma como observam e visitam a sua casa, o seu museu. Mas nunca soube se amar. Nunca deixou de ser uma bola densa que sobe pelo peito até à garganta do mundo. Uma vassoura cor de rosa que tenta limpar a poeira e a sujidade pelo caminho.

Não sei porquê que este sonho só chega agora. Talvez finalmente esteja a aprender a amar-me.

Finalmente.

Cheguei.