Mónica de Miranda e a impossibilidade de se contar os contos de Lisboa
Manuela Ribeiro Sanches
“É assim que, de certo modo, o autor surge, finalmente, como um solitário. Um insatisfeito, não um líder. Não um fundador, mas um desmancha-prazeres. E, se quisermos imaginá-lo em si mesmo na solidão do seu ofício e das suas intenções, então vemos um trapeiro, cedo na madrugada, recolhendo com o seu bastão trapos de fala e farrapos de língua para os lançar, resmungão e obstinado, um pouco inebriado, no seu carreto, não deixando, de vez em quando, de fazer esvoaçar, trocista, na brisa matinal, um ou outro pedaço dessa chita desbotada de ‘humanidade,’ ‘contemplação,’ ‘imersão.’ Um trapeiro, cedo, na madrugada do dia da revolução.” Walter Benjamin.i
Dez anos. Dez anos que vieram depositar-se sobre um texto escrito em torno de alguns trabalhos de Mónica de Miranda,ii onde se abordava o modo como, na Europa, mais precisamente em Portugal, na área metropolitana de Lisboa, se reproduziam as mesmas fronteiras, e delineavam os mesmos limites que a União Europeia vinha, então, impondo e continua, inexoravelmente, a impor. Fronteiras que o trabalho Underconstruction interrogava e reelaborava, introduzindo novas dimensões inesperadas nas abordagens habituais aos chamados ‘bairros problemáticos.’
Abordagens que replicam fronteiras resultantes de políticas e de mentalidades herdadas de velhos e novos colonialismos que, em vários contextos, mais ou menos restritos, dos sociais aos académicos, insistimos em condenar desde o século passado, para os vermos ressurgir, agora mais ameaçadores do que antes, num mundo cada vez mais desordenado por grandes interesses e pequenos tiranos, tão irresponsáveis quanto ignorantes, alimentando formas de xenofobia e de racismo próprios de nacionalismos crescentemente definidos como puros, étnicos, absolutamente iguais a si mesmos.
As mensagens da hibridez que a teoria pós-colonial não se cansou de proclamar – apropriadas, por vezes, de forma excessivamente ingénua ou otimista, quando não seguindo negligentemente mais uma voga, a ponto de se terem tornado quase desinteressantemente hegemónicas em alguns discursos académicos e artísticos – também em Portugal – revelaram-se pouco eficazes, porque indiferentes, a maior parte das vezes, às desigualdades económicas que a crise económico-financeira deste século viria a reforçar. Desigualdades agravadas pela diferença da cor da pele ou da origem, sendo os diferentes imigrados, e seus descendentes, ainda considerados ou como cidadãos de segunda ou como intrusos que, cada vez mais, há menos que tolerar do que evitar, quando não rejeitar.
Com efeito, o século XXI parece comprovar que a ideia de uma educação do género humano que o projeto iluminista antecipara era apenas isso, uma ideia, um sonho, que a realidade crescentemente racista e nacionalista vem desmentir a cada dia que passa, nomeadamente em Portugal. Com efeito, se as reivindicações de afrodescendentes ou de ciganos portugueses se tornam crescentemente audíveis na esfera pública, elas desencadeiam uma violência que põe a nu os limites do consenso de um país de brandos costumes e de benignidade lusotropical herdado do velho Estado novo, consenso que nem a Revolução descolonizadora de Abril viria a abalar, as fronteiras físicas e mentais, sempre presentes, – embora silenciosas. São estas fronteiras que se tornam, agora, ameaçadoramente cada vez mais audíveis, não só nas redes sociais, mas também no emergir de uma extrema-direita abertamente racista no parlamento português, secundada por fazedores de opinião primária nos media, cuja popularidade crescente só poderá ser explicada pelo assentimento de quem os consome e aplaude. Surge quase inofensivo o clamor e as fake news que rebentaram, em 2005, em torno do célebre Arrastão na praia de Carcavelos,iii quando comparados com a violência mediática com que foi abordada a ‘invasão’ do centro da Lisboa dita multicultural e cosmopolita, quando jovens portugueses negros desceram até aí para se manifestar contra a violência injustificada da polícia no bairro da Jamaica no Seixal, que redundou em novas agressões,iv mais uma vez injustificadas, violência que, agora recrudesce em novos incidentes que dão origem a novos protestos,v bem como a novas manifestações de racismo,vi ou ainda a declarações preocupantesvii por parte de quem deveria zelar pela tranquilidade pública.
Simbólico é o facto de existirem espaços, desde os de lazer aos de convívio cosmopolita, que parecem continuar vedados a esses ‘cidadãos de segunda,’ que clamam cada vez mais pelos seus direitos e a sua pertença, na sua diferença, a um Portugal que se quer cada vez menos diverso.
A gentrificação acelerada da capital, transformando a cidade num resort para europeus de um Norte da Europa mais abastado do que o seu Sul, varrido este por uma austeridade destruidora, vai também afastando, quando não expulsando, os seus ‘indígenas,’ porque demasiado velhos ou demasiado pobres, para os novos bairros que surgiram na senda da destruição que Mónica de Miranda registou nas suas fotografias e imagens dez anos atrás. O que não impede que os enclaves menos nobres da encosta oriental da antiga Lisboa, não vejam a continuação da fixação de imigrantes, agora maioritariamente do Bangla Desh e do Nepal, hesitando esses lugares entre um enobrecimento para turista ver, que as autoridades gostariam de apressar, e a insistência desses recém-chegados em se apropriar de espaços abandonados pelos menos afortunados, colorindo, de forma inesperada, a cidade, sem que os problemas da exclusão e do silenciamento – desde os económicos aos psicológicos – se deixem de fazer sentir, ignorados, também sempre, pelos poucos que têm acesso garantido a espaços públicos e mediáticos.
Mas fora destas questões mais gerais, a que há muito os cientistas sociais se têm vindo, de modo mais ou menos etnográfico, a dedicar, que resta, finalmente, das pequenas estórias a que esses contextos socioeconómicos – também eles resultado de políticas que as determinam – também dão lugar?
Ora, é precisamente no ponto em que essas duas realidades, a pessoal, das estórias, e a pública, das políticas, se cruzam, ponto em que o quotidiano dos indivíduos que habitam as cidades e as grandes decisões governamentais sobre urbanismo se intersectam, que o trabalho de Mónica de Miranda se vem instalar – mais uma vez –, decorrida uma década, a fim de tornar mais audíveis e visíveis as vidas daqueles que são constante, reiteradamente, subalternizados.
Regressando sempre à ideia de migração como fenómeno social e categoria política e teórica, Mónica de Miranda revisita temas e trabalhos anteriores em torno desses processos de exclusão, marcados por fronteiras que a antiga estrada militar fortificou, desde finais do século XIX, em tempo de invenção de tradições nacionaisviii, com os seus hinos, monumentos e homogeneização de um passado, que sempre se caraterizou pela diversidade, para se deter no outro lado do progresso, que esse século de otimismo voluntarista quis materializar, mas que já o século XX desmentira.
Ruínas a recordar cidades destruídas por guerras persistem – antes, seria a Bósnia, numa antiga Jugoslávia dividida por lutas tribais, antecipando os purismos étnicos que agora alastram por toda a Europa e mundo; agora poderia ser Alepo ou outras localidades esventradas por conflitos assentes, também, em ideologias religiosas, que interesses geoestratégicos da nova desordem mundial aproveitam, manipulam, em proveito próprio.
Lugares devastados pelo progresso desigual que deixa um rasto de ruínas que a câmara fixa sem comentar.
Mas há também objetos quotidianos, desde cassetes de vídeo a brinquedos, passando por certidões de nascimento, procurações ou redações em inglês sobre o vestido azul com que sonhou – e encontrou –, entre muitos outros artefactos, como sapatos, peças várias de vestuário, artigos de limpeza, manuais de economia política, fragmentos de azulejos, discos vinil, CDs, bobines e cassetes, que, nas fotografias de Mónica de Miranda, surgem destacados, isolados, do seu contexto, finalmente arquivados, para narrarem, de forma tão eloquente quanto enigmática, estórias de vida anónimas, mas plenas de particularidades.
Vestígios, que, com as suas estórias silenciosas, Mónica de Miranda se recusa tanto a narrar como a ignorar, a esquecer, criando a possibilidade de imaginarmos a complexidade desses passados, que a artista, com a sua objetiva, escava, tal arqueóloga desses não-lugares abandonados pelo chamado progresso, buscando nesses detritos biografias de indivíduos interrompidas pela modernização.
Tal trapeiro que sai de madrugada (Benjamin)ix, atento aos vestígios, aos pequenos nadas, que preencheram o quotidiano daqueles que, desalojados, os tiveram de deixar para trás, na pressa da partida ou apanhados de surpresa por essa onda de progresso, a câmara colige, sem ordem nem hierarquia, esses objetos, essa desolação que, em tempos, foi o lugar de encontro possível com os sítios de onde se veio e aqueles a que não querem que se pertença, mas a que ligam novos afetos, experiências, numa pluralidade de histórias, de origens e de raízes espalhadas através de múltiplas rotas entre lugares.
Mónica de Miranda não tenta decifrar ou impor um sentido, em suma narrar esses contos de Lisboa, quando regista testemunhos de trânsitos entre, e a pertença a, múltiplos lugares, colecionando sons e imagens,x que arquiva, aleatoriamente, sem que, por um momento, incorra na tentação de lhes sobrepor uma qualquer voz autoral, atenta às narrativas que evocam sonhos e expetativas, a maior parte das vezes frustrados, dessas vidas em trânsito físico e emocional entre Lisboa e a Praia ou Luanda, Portugal e Cabo Verde ou Angola, a Europa e a África.
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Walter Benjamin escreveu, a partir de Marcel Proust, que a recordação reifica o passado, enquanto que a memória, a involuntária, na sua arbitrariedade, é capaz de guardar a experiência.xi Pois “[a memória] é um meio de aproximação ao vivido, como a terra é o meio sob o qual as antigas cidades se encontram soterradas.” Por isso, “aquele que pretende aproximar-se do seu passado soterrado tem de comportar-se com um homem que escava. Sobretudo, não deve recear regressar constantemente ao mesmo conteúdo – espalhá-lo como se espalha terra, revolvê-lo como se revolve o solo.”xii
Ora, o arquivo que Mónica de Miranda vem construindo obsessivamente, revolvendo o solo do passado e os seus vestígios presentes, nada possui de autoritário, antes se aproxima do gesto do colecionador benjaminiano, arbitrário e compulsivo,xiii que, por isso mesmo, se escusa e escapa a qualquer impulso sistematizador, permitindo que a perplexidade e a interrogação venham depositar-se sobre essas imagens, com tudo aquilo que podemos – e, sobretudo, não podemos vir a – saber sobre esses lisboetas de corpo e a tempo inteiros – invisíveis e madrugadores, como o trapeiroxiv –, sem os quais o resort turístico em que Lisboa se transformou não conseguiria sequer funcionar. Arquivo, pois, menos para recordar, do que para conservar – na sua incompletude, tanto mais eloquente, porque concreta – fragmentos de passados e presentes que insistimos em não (querer) ver ou ouvir.
O que estes contos de Lisboa oferecem é, assim, menos uma história coerente do que um convite a que se aprenda a disponibilidade para decifrar estes vestígios, fragmentos de experiências únicas, memórias de vidas e também de uma cidade. Imagens, objetos encontrados ao acaso, pois “ao colecionador acontecem as coisas, ele não as escolhe,”xv objetos que, no seu despojo, vêm interromper a história hegemónica, que só conhece a consagração unívoca, banalizadora, de atrações turísticas, que nem todos podem partilhar. São esses outros passados que, despojados da sua aura,xvi são, contudo, resgatados pelo olhar e pela atenção da câmara da artista. Sem que este olhar se transforme em programa de denúncia política ou panfleto social, desmanchando tão só, mas não menos convincentemente, os prazeres e as malhas tecidas pelas narrativas duma sociedade que gosta de se ver como tolerante e cosmopolita, ignorando muitos dos que, há muito, a constroem. Diariamente.
i Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in Gesammelte Schriften. Band III: Kritiken und Rezensionen, Hrsg. von Hella Tiedemann-Bartels, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 219-225, aquii. p. 225.
ii Manuela Ribeiro Sanches, “Lisboa pós-colonial e outras fortalezas na modernidade,” in Mónica de Miranda e Paul Goodwin, Lisboa: Direcção-Geral das Artes, 2009, pp. 26-28.
viii Eric Hobsbawn, Terence O: Ranger, The Invention of Tradition, Cambridge [Cambridgeshire]; New York: Cambridge University Press, 1983.
ix Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in op. cit.
x https://postarchive.org/arquivo/
xi Idem, „Charles Baudelaire, Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus,“ in Gesammelte Schriften. Bd. I, 2. Abhandlungen. Hrsg. von Rolf Tiedemann und Hermann Schweppenhäuser, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 509-90, aqui, pp. 610-11.
xii Idem, „Denkbilder“, in Gesammelte Schriften. Band IV.1, Kleine Prosa. Baudelaire Übertragungen. Hrsg. Tilmann Rexroth, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 305-438, aqui, p. 401.
xiii Idem, “Der Sammler“, in Gesammelte Schriften. Band V.I, Das Passagenwerk. Hrsg. Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1991, pp. 269-280.
xiv Walter Benjamin, „Ein Außenseiter macht sich bemerkbar,“ in op. cit. p. 225.
xv Idem, „Der Sammler“, in op.cit, p. 272.
xvi Idem, “Charles Baudelaire, Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus,“ in op. cit., p. 646.